Orçamento comunitário:<br> o discurso e a prática
Está neste momento em discussão no Parlamento Europeu o orçamento para 2015, num debate revelador sobre a distância que separa o discurso europeu das políticas concretas que depois são aplicadas.
O orçamento anual corresponde à concretização do quadro financeiro plurianual 2014-2020 aprovado em 2013. O quadro financeiro plurianual (QFP) não é o orçamento da UE para os sete anos. Apenas fixa os montantes máximos que a UE pode gastar em cada ano e nas diferentes rubricas (crescimento inteligente, crescimento sustentável e recursos naturais, segurança e cidadania, a Europa no mundo, administração e compensação). Cabe depois ao Parlamento Europeu aprovar em cada ano os respectivos orçamentos, num processo negocial com a Comissão e o Conselho.
A aprovação do QFP 2014-2020 ilustra por si só a falta de coerência por parte daqueles que reclamam sempre mais Europa e mais coesão económica e social, mas depois negam-se a contribuir para o orçamento. Numa negociação morosa e complicada, com os países ricos (Reino Unido, Alemanha e Finlândia à cabeça) a exigirem cortes substanciais, chegou-se em 2013 a um compromisso que representou, pela primeira vez na história da UE, uma diminuição do quadro plurianual de três por cento face ao quadro anterior (2007-2013).
Bem prega frei Tomás…
Quanto ao orçamento para 2015, a discussão toca a raias do absurdo, com propostas do Conselho que contradizem tudo o que é apregoado pelas instituições europeias que incluem o próprio Conselho. Estamos fartos de lidar com as habituais expressões ocas do jargão europeu. Quem não ouviu falar já dos cortes virtuosos, das reformas estruturais ou das consolidações orçamentais amigas do crescimento («growth friendly»). Mas este debate, com estas propostas concretas, tem o mérito de revelar até à evidência a contradição entre o discurso e a prática política de quem governa a União Europeia.
Comecemos pelo défice. Como é sabido, a regra é não gastar mais do que se recebe. Os próprios tratados proíbem a UE de se endividar. Pois bem, apesar de ter já uma dívida acumulada de quase 25 mil milhões de euros, o Conselho Europeu propõe um corte nos créditos de pagamento ficando estes claramente abaixo do necessário, o que irá traduzir-se num aumento ainda maior do endividamento.(1) É o próprio presidente da Comissão do Orçamento que já fala em gestão irresponsável. Assim, ao mesmo tempo que se apregoa o rigor junto dos governos nacionais, e em especial a estes governos «laxistas» do Sul da Europa, é a própria UE a dar o exemplo, sub-orçamentando a despesa de 2015 e chutando pagamentos para o futuro, aumentando o endividamento que é já significativo. É caso para dizer, bem prega frei Tomás...
Vejamos agora os cortes propostos pelo Conselho. Propõe um corte de 2,1 mil milhões de euros nos compromissos de pagamento. E deste corte, registe-se que 60 por cento atingem a rubrica (1a), o tal crescimento inteligente e inclusivo, na sua componente dedicada à competitividade para o crescimento e emprego. Ao nível da investigação o corte proposto é de dez por cento (mil milhões de euros) nos pagamentos, o que irá afectar segundo dados da Comissão Europeia cerca de 600 projectos envolvendo mais de sete mil participantes entre as quais se contam 1400 PME. Ou seja, é a própria estratégia Europa 2020 e os seus objectivos que estão a ser postos em causa. Ao nível da política externa, e apesar dos diversos compromissos assumidos em matéria de cooperação com outras regiões do globo, o corte é de 378 milhões de euros. E finalmente, ironias das ironias, são as agências europeias criadas para dar corpo às novas estratégias de governança económica (semestre europeu, two-pack, six pack, etc.) que clamam contra os cortes que impedem objectivamente o seu normal funcionamento.
O orçamento de 2015 segue agora para um processo negocial entre o Conselho e a Comissão Europeia. Não temos dúvidas de que, com maior ou menor «suspense», alguma solução há-de ver a luz do dia. Uma solução de meio-termo do tipo, afinal os cortes só (!) foram metade do que inicialmente previsto. Da nossa parte fica a certeza e a convicção de que esta Europa, com este processo de integração capitalista não serve os interesses dos povos e não é reformável. A outra Europa, solidária e respeitosa da soberania de cada nação constrói-se todos os dias e há-de nascer nos escombros da actual.
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(1) No orçamento existem créditos de compromissos e créditos de pagamento, admitindo-se algum desfasamento. No entanto, numa base plurianual, ambos tenderão a igualar-se. Neste momento, e numa dinâmica que vem já do quadro anterior (2007-2013) a diferença aumenta em vez de diminuir.